segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Meu primeiro amor era loiro, bronzeado e dublado.


Sou de um tempo em que meninos e meninas estudavam em salas distintas. Isso parece prática da Idade Média, mas juro que foi há algumas décadas. Sempre muito tímida, falar com homens era algo fora do script. Para me fechar ainda mais feito uma ostra, entrei aos seis anos em um colégio de freiras, o Sion da Vila Maria, de onde só saí para cursar a faculdade, creiam, de Comunicações. Minhas amigas do Quarteto Fantástico são dessa época (uma história que merece outra “Situação Crônica”). As meninas não eram tão bobas, tinham lá suas paixões e namoradicos que encontravam na porta do colégio.

Uma vez, fui parar na diretoria com a Mari, uma das amigas do Quarteto, pois deduraram que a gente estava de namorico na entrada. Isso era proibido. O rapazinho era um vizinho gentil que nos acompanhou até a escola. Ao contrário de minha amiga tagarela, eu fiquei muda durante todo o caminho e mais muda ainda com a cara incrédula da madre superiora: “Vizinho? Olha o narizinho!”. Eu queria mais era desenhar e costurar modelitos para minhas bonecas. Era a pura verdade, mas a madre não via nada de puro nisso.  Até que as cobranças e os hormônios falaram mais alto para gostar de alguém. Mas quem?

A resposta veio do fundo do mar, mais precisamente, das ondas da televisão. Lá estava meu primeiro amor: loiro, bronzeado e dublado. O nome dele era Sandy, o menino do seriado Flipper, exibido nos anos 70. Eu tinha uns 12 anos e ainda morria de vergonha de meninos. Para minha sorte, ele morava a muitas milhas de distância, impossibilitando um encontro cara a cara. Confesso que nada foi planejado. Aconteceu ao mudar de canal. Então, mergulhei naquela aventura platônica, contando os minutos para chegar a hora de assistir às peripécias do golfinho Flipper com os irmãos Sandy e Bud. Tinha consciência de que aquela paixão morreria na praia. Mas, pelo menos, eu já podia dizer com toda a ingenuidade do primeiro amor: “Sim, estou apaixonada.”

Outras paixões vieram, às vezes em forma de boto ou com jeito de tubarão, fazendo com que eu me debatesse nesse mar de sentimentos. Bebi muita água. O último amor ancorou há uns 20 anos, sem semelhança alguma com o loiro bonitão da ficção. Baixinho, gordinho, simpático, está mais para ruivinho Bud e, como eu, é amante do mar. Qual é o segredo para não mudar de canal? Não sei exatamente. Sei que já demos boas risadas e braçadas. Enfrentamos todo tipo de maré e aprendemos a nadar juntos. E haja fôlego para seguir nossos dois filhos que nadam lá na frente. Arriscamos até no nado borboleta. E eu, que me escondia dos meninos, agora tenho três em casa.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Fim de mês. Eu não acredito.

Era aquele típico final de mês. Sem dinheiro, sem saco, sem nada pra comer. Saí do meu quartinho jurando chutar quem quer que cruzasse o meu caminho, no corredor daquele pensionato. Contava as moedas, torcendo para que, com sorte, eu  conseguisse comprar Doritos, já que não queria disputar um fogareiro de duas bocas com 30 mulheres. Não fosse por isso, teria optado por um miojo e menos 3 minutos enfadonhos daquele fim de semana que se arrastava.
Eu me xingava mentalmente. Me perguntava o quê, afinal, eu tinha ido fazer naquela cidade. Ganhava mal, morava mal e me sentia estagnada. Eu havia entendido o que era virar adulta e não achava a menor graça nisso. Ter todo o direito de ir e vir, mas, afinal, pra onde?
É engraçado perceber como certas situações se repetem e se adaptam a novos personagens. Tinha saído de uma casa onde moravam 6 -  cada qual com seu gosto musical, seus horários e manias - para morar sozinha e desfrutar do silêncio da “capital do meu país”. Eis que acabo em um pensionato com 30. Mulheres de todas as idades, culturas, horários, manias  que se separavam de mim apenas por paredes finas de compensado e disputavam o mesmo varal e o mesmo banheiro.
Uma dinâmica de almoço havia sido estabelecida aos sábados. Um grupo era responsável por comprar mantimentos, outro, por cozinhar, e o último, por arrumar a cozinha. Nenhuma das ideias me agradava. Não fazia parte do meu plano de morar sozinha, criar uma rotina doméstica com quem quer que fosse, e aquilo me enfurecia. Especialmente porque, depois de eu explicar mais de 20 vezes os meus motivos,  vários grupos se revezavam na minha porta até me convencer a fazer parte da reunião.
Era inverno, e como a gente havia extrapolado na noite anterior, a Genecelda, uma gerente nada bem humorada, havia desligado a força na hora do banho. Eu estava de mau humor. Muito mau humor. Cruzei a rua pedindo para não encontrar com um grupo de pessoas carentes, que moravam em um abrigo mantido pelo pensionato. Havia preparado um discurso e estava pronta para usá-lo. Não daria nada. Trabalhava muito e mal conseguia comer. Que varressem uma calçada, cortassem um jardim. Aquelas coisas que passam pela nossa cabeça quando não estamos precisando de emprego.
Atravesso a rua com o pulso cerrado. Não que fosse usá-lo pra golpear alguém, mas, talvez um sinal inconsciente do meu corpo de sinalizar aos presentes que eu não estava pra conversa. Apertei o passo  e não olhei  para eles, que agora começavam a cantar, em volta de uma fogueira.
Dois e cinquenta, dois e sessenta, dois e sessenta e cinco. Deu. Abro o pacote ali mesmo e começo a devorar 3 salgadinhos por vez. Sinto um leve alívio, que logo se transforma em um “grande soco” no estômago , assim que piso novamente fora do mercado. Olho para o grupo de novo. E, dessa vez eles me veem. Começo a ensaiar a minha fala, mas meus pensamentos são interrompidos.
- Ei, moça – o mais velho deles grita.
(Pqp, é agora que eu...)
- Quer cear com a gente? (“Cear “foi a palavra empregada. Acredite se quiser).
- N..n..não, obrigada.
- Não mesmo? Hoje conseguimos pão e até um vinho.

As lágrimas escorrem. Já não penso mais, apenas continuo andando.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

#140 - Arte por Sheila Cristina
Inspirada no tema "FÉRIAS DE INVERNO"
Acrílico s/ papel, 2013

terça-feira, 30 de julho de 2013

Os olhos Sanpaku

Ela nasceu. Era a irmã do meio de seis filhos, apenas um homem. Era bonita e muito meiga, quietinha. Mas algo denunciava que algo não ia bem, seus olhos Sanpaku.

Em um dia de inverno, nos idos de 1954, um dos irmãos adoeceu: catapora. Ai pegou geral, óbvio, todos ficaram com aquelas bolinhas purulentas que coçavam até os cabelos, e aí vai um banho de camomila atrás do outro, para acalmar a coceira e melhorar o pus... uma febrona, na época que baixar febre era possível somente com banho de imersão e álcool na sola dos pés e na nuca. E muita oração, pois esta sempre existiu, sempre adiantou, e continuará existindo porque assim é.

Mas três irmãos pegaram aquela catapora forte, foram hospitalizados para controlar a febre, em uma época em que quase não existiam hospitais, pelo alto custo de internação (que persiste até hoje), e pela pobreza reinante (também, infelizmente).

A febre de Sayoko aumentou. E aumentou em um grau que atingiu suas meninges, e o impossível de uma catapora causar, aconteceu. E mesmo que não possamos entender algumas coisas, elas só podem ser assim, e nos resta aceitar.

Os olhos Sanpaku se fecharam para esta vida e encheram de lágrimas outros olhos. Mas se abriram em outro plano, para conhecer outros lugares e outras pessoas. E hoje já sorriem, pelo passado, pelo presente.

E a maldição dos olhos Sanpaku, que são aqueles que têm a parte do globo (a branca) superior ou inferior aparente, entre a íris e a pálpebra, persiste, até hoje, por ela, por vários outros que também morreram cedo demais e deixaram saudades.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Tudo sobre as estrelas.


Olá,                                                               
moça que me faz acreditar no impossível. Costumo capturar seu sorriso todos os dias e engarrafá-lo dentro da minha cabeça. Não, você não me conhece, mas quando conhecer vai descobrir que tenho mania de falar das minhas manias e dos contos que ainda não escrevi, necessariamente nesta desordem.

Perdoe-me se minhas ideias soarem inverossímeis, soul apenas eu andando pra lá e pra cá dentro da minha cabeça, sonhando em voz alta, desbravando universos que só eu conheço, mas que vou te apresentar. Prepare-se. Assim eu sou, soul eu assim. E nunca fui tão sincero em toda minha a existência.

Alguns me chamam de escritor de poucas palavras, outros de porco chauvinista. Pseudointelectuais me definiriam como o poeta do infinito. Mas os que mais me atraem são os que sentem despretensiosamente aquilo que as letras garranchosas dos meus rascunhos gritam desesperadamente.

Qual deles será você? Já me perguntei isso dezenas de vezes nos últimos dias.

Sem querer, os teus fluídos fazem o meu dia ter esperança. E os tempos costumam ser difíceis quando não tem algum significado, um motivo, um brilho, por mais apagado que seja.

Este texto escorria feito água de chuva na janela, entortando a linha do meu raciocínio – e foi quando pensei: “Não me importa mais nada, eu só preciso mostrar o imostrável, brincar com o inexprimível, botar mais brasa nesta explosão de expressão.”


E, assim nasce o sentimento mais intenso do universo. Do meu universo. Enfim, foda-se tudo isso.que importa é que eu seria capaz de dar um passo pra fora de mim, só pra chegar até você. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Em julho, Londres bandida nos visitava

Poucos períodos talvez sejam tão emblemáticos e representem melhor o meu caráter do que as férias de julho; ou férias de inverno no hemisfério sul deste planeta, próximo ao trópico de Capricórnio, 23° 41′ 38″ S, 46° 33′ 54″ W, onde fui criado e vivo.
Passado o entusiasmo inicial do primeiro dia de aula, em fevereiro, quando a saudade dos amigos nos fazia esquecer a maratona acadêmica que começava, logo vislumbrava no calendário o início de julho. Com os ouvidos embaçados à palestra inicial da diretora da escola, aquele sétimo quadrado, quadriculado, com números de 1 a 31, induzia meu pensamento à cama. Ao acordar sozinho na casa em silêncio, apenas sob uma leve névoa de inveja daqueles que, por não serem mais estudantes, logo cedo haviam virado fumaça.
No entanto, a mesma aspiração que me carregava ao descanso prescrito das manhãs, abduzia à minha razão um ponto fundamental: fazia frio. Bastante frio. E, com os amigos todos entocados, dissipar o entusiasmo vadio e energia de um menino de onze anos não era exercício trivial. Por isso, na primeira manhã de férias, vestia as meias de lã confeccionadas pela minha mãe e corria para a folhinha admirar e convocar o dia 1º de dezembro: férias de verão, de três meses; de rua com hidrante aberto esguichando água na molecada. Não aquela moeda gelada de um mês que o somítico calendário escolar oferecia.
Em julho o dia faz-se claro tarde, escurece muito cedo e a Serra do Mar, principalmente naqueles anos, soprava uma névoa de cegar todos os fins de tarde. E fazia frio; bastante frio. Mesmo que algumas festas juninas que não cabiam em seu mês invadissem o mês seguinte, geralmente, elas vinham acompanhadas das recuperações que eu e meus amigos trazíamos do semestre letivo. No entanto, mesmo com a resistência gelada, nunca faltou quórum para as brincadeiras de rua que terminavam com a fumaça, do cigarro imaginário, que nossos pulmões quentes ofegavam através de nossas bocas.
Do frio e do sereno, o que falava a nós era um não-sei-quê de Sherlock Holmes ou Scotland Yard no encalço de Jack, o Estripador. E, inconscientemente, nossas brincadeiras eram pautadas e se adaptavam a este cenário de romance policial.
A regra, ao contrário daqueles dias, sempre foi muito clara e não variava entre nenhuma mãe: escureceu tem que estar dentro de casa. O que variava era o castigo por seu descumprimento. Em geral, aos delinqüentes, sobravam umas palmadas e uma bela fração das férias trancado dentro de casa. Embora deva cometer justiça aqui: nunca levei as tais palmadas, tão pouco fiquei de castigo, mesmo desafiando a ordem regularmente. Mas sofria por tabela às punições aplicadas sobre meus amigos. Incontáveis foram as longas e cinzas tardes que passei conversando com eles pelo vão da porta ou da janela; eles presos dentro de casa e eu à necessidade de suas companhias.
E geralmente eram nesses dias que combinávamos o que faríamos durante o intervalo entre o castigo vigente e o próximo. Mulheres ainda não eram alvos de nossa atenção – eufemismo à parte. Nossas referências de pessoas respeitadas naquele tempo eram os garotos mais velhos que aterrorizam o bairro: ladrõezinhos de padaria com alvará do ensino formal. Juntando isso àquele cenário londrino, ou de Gothan City de Batman ausente, não era de se surpreender que nessas reuniões surgissem idéias de contravenções estapafúrdias.
Com os dias anoitecendo por volta das cinco da tarde e os pais, em sua maioria, dependendo do transporte público para voltarem do trabalho, tínhamos pelo menos duas horas para aproveitar a anárquica escuridão e o anonimato que ela oferecia. Então, assim que a névoa da tarde encerrava a guerra de pipas no céu, nossa diversão era invadir escolas, construções, bibliotecas e todo e qualquer lugar onde houvesse pelo menos um vigia.
Nosso lugar de incursão predileto era o Elis Regina. Um espaço grande, sem grades nos jardins que o cercavam e estacionamento, com biblioteca, teatro, e pelo menos três vigias por turno. Antes de invadir, identificávamos onde cada guarda fazia o seu turno, traçávamos metas e a rota de nossa fuga. Não havia plano de vandalismo ou qualquer apropriação indébita. O objetivo era sempre o mesmo: invadir, ser descoberto e fugir sob o sons dos apitos dos guardas. Completamente alienados às emoções que os livros da biblioteca poderiam oferecer, ou as apresentações de teatro, íamos para o espaço cultural em busca da adrenalina primitiva das perseguições.
Se os anos trouxeram algum bom senso que me afastou da delinqüência, sigo retratado naquele menino dos primeiros dias de aula. Anelando o alívio e a satisfação mais próxima, porém míope para o seu contexto amplo, acabo por ter que fantasiar sobre as imperfeições do objetivo alcançado e traço planos e projetos onde possa encontrar graça e me divertir sob a névoa onde existo.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Mentiras de julho

Silêncio interrompido constantemente por conversas e risadinhas fora de hora, lápis rabiscando uma ou outra anotação no caderno e todos os olhos voltados, apreensivos, ao relógio quando, finalmente:

"Pééééééééééééééééééééé! " - o sinal da última aula instaura a anarquia na sala!

Enquanto uns gritam comemorando a chegada das férias, outros atiram bolinhas de papel nos colegas. Num canto, Juliana escreve recadinhos no caderno de Sofia, no corredor, entre as carteiras, alguns meninos simulam golpes de luta que, provavelmente, são reproduzidos muito melhor em suas imaginações, e aos poucos, o silêncio vai se restabelecendo com o último anúncio oficial do semestre: a entrega das lições.

"- Lições de Férias?" - é a reação de cada aluno ao receber a triste notícia.

E esta é a primeira das muitas mentiras que o mês de julho nos conta.

Como podem chamar de férias um período com obrigações diárias?

"- Uma de português e outra de matemática - totalizando 60! Façam uma de cada matéria diariamente e não pesará tanto." instruía o professor.

Em situações como esta, em que a possibilidade "não fazer" inexiste - quer fosse pela vigilância dos meus pais ou pelo meu senso de responsabilidade e amor à vida, só restavam 3 alternativas:

1) Fazer tudo nos primeiros dias e livrar-se dos compromissos para depois relaxar por completo, retornando quase enjoado de descansar;
2) fazer uma tarefa por dia conforme o proposto, inclusive para não esquecer dos conteúdos, balanceando o dia em lazer e compromisso;
3) esquecer que existem tarefas até o penúltimo dia de férias e passar os últimos dois dias quase sem dormir pra terminar tudo, voltando às aulas ainda mais cansado.

Acho que não preciso dizer o que eu, e acredito que 99% dos meus colegas fazíamos, né?

Imagina só você com suas férias marcadas, depois de um ano de dedicação diária e chega seu chefe:

" Sr Carlos, o senhor fez um excelente trabalho em nossa empresa neste último ano, merece agora descansar um pouco, né?
Quando é mesmo que vai tirar os 30 dias? Julho? Ótimo, ótimo...
Mas olha só, um mês longe das atividades pode fazê-lo esquecer de como trabalhamos então, ao invés de 8h, o senhor deverá vir todos os dias por 2h e trabalhar nos nossos relatórios."

"..."
  
Mais interessante ainda eram as capas destes calhamaços. Geralmente, ilustrados por flocos ou bonecos de neve, patins de gelo, esqui...segunda mentira de julho!
Porque eu não sei você, mas eu nunca passei estas férias na neve. Em São Paulo faz frio, é verdade. Mas nunca pra tanto!
E mesmo que fosse para o exterior - o que nunca foi o caso - julho não é o mês de verão?

O mais próximo de inverno com gelo que cheguei foi em Campos do Jordão, quando nem era um destino tão badalado e, portanto, ninguém achava normal pagar R$50 pra ver ensaio do Festival de Inverno. Ao contrário, íamos de graça ao evento principal (tudo bem que muitas vezes para ouvir música experimental, que aos nossos ouvidos leigos mais parecia efeito sonoro).

O fato é que nesta cidade, em um julho qualquer, descobri um rinque de patinação no gelo (mantido artificialmente, claro). E como qualquer criança curiosa quis "patinar" em todos os invernos que este "brinquedo" aparecia. Deixemos os detalhes desta experiência pra lá. O importante aqui é ficar claro que com isto, os patins de gelo, mas somente eles, ficaram justificados na capa das minhas lições.

Mas naquele ano, meu pai não tinha tirado férias e estava no Rio de Janeiro a trabalho. E assim fomos todos nós: minha mãe, meu irmão e eu, encontrá-lo e nos amontoar em um apart hotel no Rio, que em julho, não tem nada de 40º.

Ganhamos muito com isto já que, com a temperatura mais amena, conseguimos fazer todos os passeios de turista sem sofrimento. De taxi, de ônibus...foi uma delícia. Corcovado, Pão de Açúcar, Arcos da Lapa, as praias, os cariocas...foi a primeira vez na vida que pensei em morar na praia.

Nesta fase eu já não tinha 60 tarefas pra fazer, era uma praticamente adolescente. Tinha somente uma redação de tema livre. E não sei bem se foi a viagem pra um destino novo, as praias e as belezas naturais do Rio, que sempre foi e será lindo, ou o apart-hotel que, apesar de apertado para os 4, era perfeitamente possível e aconchegante para uma pessoa e me fez pular anos à frente imaginando que na vida adulta moraria lá facilmente, que me inspirou.

Mas aconteceu que os meus costumazes temas "minhas férias", "minha viagem", "minha família", "meu cachorro" deram lugar para outro tipo de texto. Um descritivo, que acompanhava o crescimento de uma flor. Um hibisco pra ser mais precisa. Usei parágrafos intermináveis com todos os vocábulos que conhecia para descrever minuciosamente desde a semente na terra até o desabrochar em flor. Por fim, a flor era arrancada e lançada em cima de um caixão. "E assim apodreceria com a pessoa lá enterrada".

Mórbido? Obscuro? De mau gosto? Revelando um momento de transição? Vai saber...

A única coisa que sei é que esta foi a primeira e última redação que me rendeu um 10! E que me levou à maior de todas as mentiras: a de que eu poderia escrever.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

DRAMA QUEEN E O TONTO BOY


#134 - Arte por Sheila Cristina
Inspirada no tema "PRIMEIRO AMOR"

Acrílico s/ papel, 2013



“Olha, é o seguinte, nós somos três, o garoto é um só. Vamos ter que dividir tá?”

Cada uma tomou posição e, aleatoriamente iam se espremendo na porta da classe, dançando e cantando como podiam. Tudo bem, contanto que todas dividissem a atenção que o espectador, ainda confuso, receberia.

A medida que se empurravam umas as outras, a dança ia piorando, a melodia, que nunca existiu realmente, ia atingindo o máximo do constrangimento. E claro, o garoto, era tomado por uma onda de calor e frio representados por suas bochechas coradas e seu olhar de espanto. Pobre tonto.

A coreografia acabou, a aula já vai começar e as três, agora já sem avistar o garoto, discutiam o grande problema que tinham em mãos.

“Quem vai namorar com ele?”

A resposta veio rápido.

“Deixa ele escolher então!”

Em poucos segundos o caso seria resolvido, ao menos para o garoto, que ao abrir a porta da sala e se deparar com tão sutil pergunta não teve dúvida alguma.

“É que não quero namorar nenhuma. Quero aquela, mas ela não me dá bola!

Disse apontando para outra garota da sua classe.

Fecha a porta, volta pra aula, disfarça o riso murcho e decide não gostar mais de nenhum garoto, (Drama Queen), muito menos um que exija toda essa competição, (Tonto Boy).

Afinal, tem cinco anos e é só a primeira semana de aula. Dali pra frente, encontraria tantos outros primeiros amores, em situações tão distintas e inesquecíveis. Nunca tentou compará-los, mas se via classificando cada um e se divertia.

“Os platônicos, os reais, os breves como um sopro, os intensos, os que pegam de surpresa e os que não avisam quando vão embora.”

Mas de uma coisas desconfiava, todos foram primeiros amores. 

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Amor na mira

Ah, como o tempo passa, e com ele, passa tudo. Principalmente a ideia fictícia de que certas sensações podem ser rotuladas,  descritas e vendidas como uma fórmula quase exata, com mais ou menos um grau de variação (pra mais ou pra menos) de acordo com o “tempero” que se dá a ela.
Toda a primeira lembrança sobre algum acontecimento inaugural na minha vida me remete a sensação que tive antes de vivê-la. A ansiedade em sentir, as conjecturas, as perguntas para pessoas “mais experientes”, buscando arrancar, discretamente, alguma resposta, com a petulância e ares de quem diz: “não que eu não saiba disso, mas..”.
A própria descrição do sentimento, por si só, já não me atraia. Por que raios eu iria querer que meus joelhos tremessem, meu coração disparasse e a minha boca secasse? Era mais ou menos como sentir os famigerados enjoos  que tomavam conta de mim a cada viagem um pouco mais longa, mas com uma grande diferença: eu não saberia onde esse caminho iria me levar.
Haviam, claro, os que sempre garantiam que não era apenas uma sensação física, e que valia muito a pena, mas eu não me convencia, apesar de achar que deveria passar – e logo – por isso. E o dia chegou.
E como não se pode precisar o sentimento, também não conseguiria fazer com a forma como este se apresentou.  Prefiro descrevê-lo como uma mira, que necessitava de um alvo para acertar. Tão perdida em seu próprio contexto, que acabou acertando dois. Não houve tremores, mas o joelho amoleceu. Uma sensação de euforia, medo do fracasso. De ouvir um não quando nem se sabia, exatamente, o que seria um sim. 
E isso aconteceu em meio a um jogo de futebol, quando um dos meninos, que teimava em aparecer mais do que os outros, acabou sendo o “escolhido” pelo meu raio distorcido. O que me rendeu uma tarde de investigação, escondida em um canto do quarto dos meus avós, folheando  as páginas amarelas em busca de um número de telefone em meio a uma lista de cento e  vinte apartamentos. E encontrei. Primeiro toque, coração na boca e ele atende. Não tinha como voltar atrás. Não sei exatamente como, mas, o convenci a me encontrar na rua da minha avó para “batermos um papo”. Tampouco sei como consegui ir. Mas fui, com mais meia dúzia de amigas. Não sei ao certo se não lembro, ou se minha memória seletiva me permitiu apagar, mas vou poupar-lhes da conversa que se seguiu. Porém, seria honesto dizer que sai desse encontro com um grande troféu abacaxi, proporcional ao desfile de “pataquadas” pertinentes a uma menina de doze anos.
Mas a sensação de derrota perdurou até o dia seguinte. Quando minha mira acertaria um alvo que me renderiam quatro anos de chororô e o ingresso inevitável ao mundo dos eternos apaixonados.
Ah,  o amor. Há quem diga que ainda vale a pena. Eu ainda não sei, mas continuo apostando

Capitão Kong


“A memória é uma ilha de edição” pertence àquele grupo de sentenças certeiras que parecem ficar vagando, no oceano suspenso e invisível de idéias, ao redor de nós, até serem pescadas por alguém. Os preguiçosos difusores da coletânea-clichê “O primeiro (amor, transa, sutiã, carrinho de rolimã, talho na testa, ou seja lá o que for...) a gente nunca esquece”, devem ficar intrigados com a frase fisgada pelo anzol de Waly Salomão. Poucos são aqueles que, talvez por alguma disfunção neurológica, guardam cada detalhe de tudo o vivenciaram ou viram – fotógrafos de memórias. Mas para estes o exercício, recordar o primeiro amor, provavelmente não sirva. Estão condenados a viverem aprisionados junto às lembranças que não dão lacunas à poetização leviana que nós, com cérebros menos competentes, temos o prazer de oferecer às sessões imaginárias do grande filme que protagonizamos. A eles restam as certezas.
Assim enfloro, firulo, como subjugo, o resultado que está por vir. A história começa assim – ou melhor, começa um pouco antes, assim:  
Sentado no chão da sala de casa, tenho à minha frente uma grande arca suporta a TV e centenas de fitas VHS da JVC, ou Maxell, em sua maioria, já defloradas. Ao lado da TV, trabalham dois vídeos cacetes e um emaranhado de fios acostumados a desafiar FBI Warning que iniciam os filmes alugados e advertem sobre as punições aos piratas. Sexta-feira é dia de alugar três filmes pelo preço de dois e devolver só na segunda, rebobinados, evidentemente. Com quatro anos, sem saber ler ou escrever, meu pai sempre traz um filme dublado para o filho caçula.
Ao som do portão se abrindo, corro para receber meu pai. Os cumprimentos à sua chegada nesses dias são protocolares. As mãos e olhos logo correm para o pacote que carrega os filmes. “Este é o seu, Gugu”. E assim meus pais garantiam pelo menos duas horas de sossego.
Foi numa destas sextas-feiras que meu pai chegou com este filme. Na capa, um macaco enorme, lutando contra aviões e helicópteros, com um pé em cada uma das torres do que eu viria saber, anos tarde, chamar World Trade Center.
Aos meus olhos, a viagem exótica à ilha desconhecida, o barco, os nativos e o macaco logo sucumbem à personagem resgatada pelos exploradores em sua jornada. Os nativos logo perceberam que não haveria oferenda melhor para acalmar a fera que Dwan (Jessica Lange). Linda, entregue com todas as pompas de estrela hollywoodiana ao gorila gigante, em seu banho de cachoeira, além do coração do símio, desfibrilou também meu pequenino coração. Fiquei vidrado. Gastei a cópia que fizemos e nunca mais pude ser o mesmo; ou pensar em viver apenas comigo mesmo.
Mas há muito, mesmo para Platão, neste disparate que mereça receber o louro de “primeiro amor”. Como disse, comecei um pouco antes. Este preâmbulo serve apenas de embasamento para o que viria a ser minha primeira viagem aos meandros deste “comboio de cordas (‘que gira a entreter a razão’) chamado coração”.
Reinava hostilidade na EMEI Guilherme de Almeida, próxima a minha casa. Os alunos do pré I, II e III se dividiam em grupos e alguns territórios eram demarcados pelos grupos – Faixa-de-Gaza-Fraldinha. O grupo que liderava chamava-se Thundercats e nossa base era embaixo da “árvore do sangue-do-diado” – por causa da seiva vermelha que escorria em seu tronco. Mas o amor é mesmo o mais poderoso antídoto à violência. Em meio às articulações de guerras de mamonas, campanas e emboscadas, incursões às lancheiras inimigas e operações-tachinhas na volta do recreio, estava claro que não tinha mais o mesmo entusiasmo.
Apenas suspirava, “Ah, a Cris”. A Cris era uma japonesinha de calça azul, camiseta listrada, como exigia o uniforme, e lacinhos ora vermelhos, ora amarelos, ora azuis prendendo os cabelos. Além de dividir a mesma sala de aula e as atenções da tia Marli todas as manhãs, morava na mesma rua que eu. Mas, como se sabe, naquele tempo os portões eram muito mais altos, os cadeados não tinham chaves e a rua bem mais comprida. Restava, às matinês, buscá-la de binóculos pelo vão da grade de ferro de meu portão.
Dediquei desenhos. Sentei ao seu lado nos recreios. Suei frio atrás de assuntos que puxava. Ela seguia impassível.
Convoquei uma reunião entre os Thundercats.
Sob a árvore do sangue-do-diabo, expliquei o plano. Não iríamos atacar os meninos da Fubem, ou da vila Ferreira. Nossa cruzada naquela manhã tinha outro propósito: eu ia beijar a Cris. Dividimos a turma. Um grupo ficou responsável por distrair a tia Marli; outro armou a insídia. Coitadinha. Enquanto brincava, nos aproximamos. Meus comparsas fizeram a cobertura, tornando aquele espaço do pátio o altar de oferenda pagã. Rompi o bloqueio, lutamos um pouco e, no chão, não pôde evitar o selinho que lhe dei.  
Ela chorou; eu corri – já arrependimento. De volta à árvore do sangue-do-diabo, talvez eu fosse o mais constrangido nas comemorações com o grupo. E, para o remorso ser ainda maior, na saída, com as bochechas e narizinho vermelhos pelo choro, veio em minha direção, ao lado da mãe, para entregar o convite de seu aniversário. Com o braço estendido, quando peguei o convite – feito a mão –, vi que seu dedinho trazia agora um Band-Aid. O choro era pelo beijo roubado, ou por tê-la machucado? Nunca soube, embora creia que tenha sido pelos dois.
Mesmo assim, continuamos amigos até o primário (e um caminhão da Graneiro) nos separar.
Outros tiveram Clark Gable, Marlon Brando, James Dean, Sinatra. Tive o King Kong como modelo de conquistador de cinema. Acho que foi isso.
Embora consiga editar um pouquinho do que aconteceu naquele tempo, fora da tela não há como rebobinar. Talvez, se pudesse, ao contrário de King Kong, não caísse nas mesmas armadilhas todas as vezes. Talvez em outras; piores ou melhores. Mas decidi: não queria mais o protagonismo de macaco grande e bravo. Sigo desemaranhando os cordões do peito, pouco a pouco, capitão da nau, com o leme solto em busca da próxima ilha desconhecida.