“A memória é uma ilha de edição” pertence àquele grupo de
sentenças certeiras que parecem ficar vagando, no oceano suspenso e invisível
de idéias, ao redor de nós, até serem pescadas por alguém. Os preguiçosos
difusores da coletânea-clichê “O primeiro (amor, transa, sutiã, carrinho de
rolimã, talho na testa, ou seja lá o que for...) a gente nunca esquece”, devem
ficar intrigados com a frase fisgada pelo anzol de Waly Salomão. Poucos são
aqueles que, talvez por alguma disfunção neurológica, guardam cada detalhe de
tudo o vivenciaram ou viram – fotógrafos de memórias. Mas para estes o exercício,
recordar o primeiro amor, provavelmente não sirva. Estão condenados a viverem
aprisionados junto às lembranças que não dão lacunas à poetização leviana que
nós, com cérebros menos competentes, temos o prazer de oferecer às sessões
imaginárias do grande filme que protagonizamos. A eles restam as certezas.
Assim enfloro, firulo, como subjugo, o resultado que está
por vir. A história começa assim – ou melhor, começa um pouco antes, assim:
Sentado no chão da sala de casa, tenho à minha frente uma
grande arca suporta a TV e centenas de fitas VHS da JVC, ou Maxell, em sua
maioria, já defloradas. Ao lado da TV, trabalham dois vídeos cacetes e um
emaranhado de fios acostumados a desafiar FBI
Warning que iniciam os filmes alugados e advertem sobre as punições aos
piratas. Sexta-feira é dia de alugar três filmes pelo preço de dois e devolver
só na segunda, rebobinados, evidentemente. Com quatro anos, sem saber ler ou
escrever, meu pai sempre traz um filme dublado para o filho caçula.
Ao som do portão se abrindo, corro para receber meu pai. Os
cumprimentos à sua chegada nesses dias são protocolares. As mãos e olhos logo
correm para o pacote que carrega os filmes. “Este é o seu, Gugu”. E assim meus
pais garantiam pelo menos duas horas de sossego.
Foi numa destas sextas-feiras que meu pai chegou com este
filme. Na capa, um macaco enorme, lutando contra aviões e helicópteros, com um
pé em cada uma das torres do que eu viria saber, anos tarde, chamar World Trade
Center.
Aos meus olhos, a viagem exótica à ilha desconhecida, o
barco, os nativos e o macaco logo sucumbem à personagem resgatada pelos exploradores
em sua jornada. Os nativos logo perceberam que não haveria oferenda melhor para
acalmar a fera que Dwan (Jessica Lange). Linda, entregue com todas as pompas de
estrela hollywoodiana ao gorila gigante, em seu banho de cachoeira, além do
coração do símio, desfibrilou também meu pequenino coração. Fiquei vidrado. Gastei
a cópia que fizemos e nunca mais pude ser o mesmo; ou pensar em viver apenas comigo
mesmo.
Mas há muito, mesmo para Platão, neste disparate que mereça
receber o louro de “primeiro amor”. Como disse, comecei um pouco antes. Este preâmbulo
serve apenas de embasamento para o que viria a ser minha primeira viagem aos
meandros deste “comboio de cordas (‘que gira a entreter a razão’) chamado
coração”.
Reinava hostilidade na EMEI Guilherme de Almeida, próxima a
minha casa. Os alunos do pré I, II e III se dividiam em grupos e alguns
territórios eram demarcados pelos grupos – Faixa-de-Gaza-Fraldinha. O grupo que
liderava chamava-se Thundercats e nossa base era embaixo da “árvore do
sangue-do-diado” – por causa da seiva vermelha que escorria em seu tronco. Mas
o amor é mesmo o mais poderoso antídoto à violência. Em meio às articulações de
guerras de mamonas, campanas e emboscadas, incursões às lancheiras inimigas e operações-tachinhas
na volta do recreio, estava claro que não tinha mais o mesmo entusiasmo.
Apenas suspirava, “Ah, a Cris”. A Cris era uma japonesinha
de calça azul, camiseta listrada, como exigia o uniforme, e lacinhos ora
vermelhos, ora amarelos, ora azuis prendendo os cabelos. Além de dividir a
mesma sala de aula e as atenções da tia Marli todas as manhãs, morava na mesma
rua que eu. Mas, como se sabe, naquele tempo os portões eram muito mais altos,
os cadeados não tinham chaves e a rua bem mais comprida. Restava, às matinês,
buscá-la de binóculos pelo vão da grade de ferro de meu portão.
Dediquei desenhos. Sentei ao seu lado nos recreios. Suei
frio atrás de assuntos que puxava. Ela seguia impassível.
Convoquei uma reunião entre os Thundercats.
Sob a árvore do sangue-do-diabo, expliquei o plano. Não
iríamos atacar os meninos da Fubem, ou da vila Ferreira. Nossa cruzada naquela
manhã tinha outro propósito: eu ia beijar a Cris. Dividimos a turma. Um grupo
ficou responsável por distrair a tia Marli; outro armou a insídia. Coitadinha.
Enquanto brincava, nos aproximamos. Meus comparsas fizeram a cobertura,
tornando aquele espaço do pátio o altar de oferenda pagã. Rompi o bloqueio,
lutamos um pouco e, no chão, não pôde evitar o selinho que lhe dei.
Ela chorou; eu corri – já arrependimento. De volta à árvore
do sangue-do-diabo, talvez eu fosse o mais constrangido nas comemorações com o
grupo. E, para o remorso ser ainda maior, na saída, com as bochechas e narizinho
vermelhos pelo choro, veio em minha direção, ao lado da mãe, para entregar o
convite de seu aniversário. Com o braço estendido, quando peguei o convite –
feito a mão –, vi que seu dedinho trazia agora um Band-Aid. O choro era pelo
beijo roubado, ou por tê-la machucado? Nunca soube, embora creia que tenha sido
pelos dois.
Mesmo assim, continuamos amigos até o primário (e um
caminhão da Graneiro) nos separar.
Outros tiveram Clark Gable, Marlon Brando, James Dean,
Sinatra. Tive o King Kong como modelo de conquistador de cinema. Acho que foi
isso.
Embora consiga editar um pouquinho do que aconteceu naquele
tempo, fora da tela não há como rebobinar. Talvez, se pudesse,
ao contrário de King Kong, não caísse nas mesmas armadilhas todas as vezes.
Talvez em outras; piores ou melhores. Mas decidi: não queria mais o protagonismo
de macaco grande e bravo. Sigo desemaranhando os cordões do peito, pouco a
pouco, capitão da nau, com o leme solto em busca da próxima ilha desconhecida.
nossa!!! estou fascinada com esse texto maravilhoso e encantador...meus sinceros parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Diana! Fico super feliz que tenha gostado. E vamos que vamos com nossos textos e memórias. Grande abraço.
ExcluirQue lindo esse texto!!!
ResponderExcluirRemeteu-me aos meus tempos de pré-escola (também tive o meu Pedrinho rs) e das primeiras descobertas e encantos...
E que a delicadeza (tão presente no seu texto) esteja sempre presente em nossas vidas, memórias e histórias!
Valeu, Joyce! Que bacana que esta história pôde remetê-la às suas histórias... Obrigado pelas palavras e vamos construindo nossas vidas sobre alicerces firmes, mas sensíveis aos que nos acompanham.
Excluir