terça-feira, 30 de julho de 2013

Os olhos Sanpaku

Ela nasceu. Era a irmã do meio de seis filhos, apenas um homem. Era bonita e muito meiga, quietinha. Mas algo denunciava que algo não ia bem, seus olhos Sanpaku.

Em um dia de inverno, nos idos de 1954, um dos irmãos adoeceu: catapora. Ai pegou geral, óbvio, todos ficaram com aquelas bolinhas purulentas que coçavam até os cabelos, e aí vai um banho de camomila atrás do outro, para acalmar a coceira e melhorar o pus... uma febrona, na época que baixar febre era possível somente com banho de imersão e álcool na sola dos pés e na nuca. E muita oração, pois esta sempre existiu, sempre adiantou, e continuará existindo porque assim é.

Mas três irmãos pegaram aquela catapora forte, foram hospitalizados para controlar a febre, em uma época em que quase não existiam hospitais, pelo alto custo de internação (que persiste até hoje), e pela pobreza reinante (também, infelizmente).

A febre de Sayoko aumentou. E aumentou em um grau que atingiu suas meninges, e o impossível de uma catapora causar, aconteceu. E mesmo que não possamos entender algumas coisas, elas só podem ser assim, e nos resta aceitar.

Os olhos Sanpaku se fecharam para esta vida e encheram de lágrimas outros olhos. Mas se abriram em outro plano, para conhecer outros lugares e outras pessoas. E hoje já sorriem, pelo passado, pelo presente.

E a maldição dos olhos Sanpaku, que são aqueles que têm a parte do globo (a branca) superior ou inferior aparente, entre a íris e a pálpebra, persiste, até hoje, por ela, por vários outros que também morreram cedo demais e deixaram saudades.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Tudo sobre as estrelas.


Olá,                                                               
moça que me faz acreditar no impossível. Costumo capturar seu sorriso todos os dias e engarrafá-lo dentro da minha cabeça. Não, você não me conhece, mas quando conhecer vai descobrir que tenho mania de falar das minhas manias e dos contos que ainda não escrevi, necessariamente nesta desordem.

Perdoe-me se minhas ideias soarem inverossímeis, soul apenas eu andando pra lá e pra cá dentro da minha cabeça, sonhando em voz alta, desbravando universos que só eu conheço, mas que vou te apresentar. Prepare-se. Assim eu sou, soul eu assim. E nunca fui tão sincero em toda minha a existência.

Alguns me chamam de escritor de poucas palavras, outros de porco chauvinista. Pseudointelectuais me definiriam como o poeta do infinito. Mas os que mais me atraem são os que sentem despretensiosamente aquilo que as letras garranchosas dos meus rascunhos gritam desesperadamente.

Qual deles será você? Já me perguntei isso dezenas de vezes nos últimos dias.

Sem querer, os teus fluídos fazem o meu dia ter esperança. E os tempos costumam ser difíceis quando não tem algum significado, um motivo, um brilho, por mais apagado que seja.

Este texto escorria feito água de chuva na janela, entortando a linha do meu raciocínio – e foi quando pensei: “Não me importa mais nada, eu só preciso mostrar o imostrável, brincar com o inexprimível, botar mais brasa nesta explosão de expressão.”


E, assim nasce o sentimento mais intenso do universo. Do meu universo. Enfim, foda-se tudo isso.que importa é que eu seria capaz de dar um passo pra fora de mim, só pra chegar até você. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Em julho, Londres bandida nos visitava

Poucos períodos talvez sejam tão emblemáticos e representem melhor o meu caráter do que as férias de julho; ou férias de inverno no hemisfério sul deste planeta, próximo ao trópico de Capricórnio, 23° 41′ 38″ S, 46° 33′ 54″ W, onde fui criado e vivo.
Passado o entusiasmo inicial do primeiro dia de aula, em fevereiro, quando a saudade dos amigos nos fazia esquecer a maratona acadêmica que começava, logo vislumbrava no calendário o início de julho. Com os ouvidos embaçados à palestra inicial da diretora da escola, aquele sétimo quadrado, quadriculado, com números de 1 a 31, induzia meu pensamento à cama. Ao acordar sozinho na casa em silêncio, apenas sob uma leve névoa de inveja daqueles que, por não serem mais estudantes, logo cedo haviam virado fumaça.
No entanto, a mesma aspiração que me carregava ao descanso prescrito das manhãs, abduzia à minha razão um ponto fundamental: fazia frio. Bastante frio. E, com os amigos todos entocados, dissipar o entusiasmo vadio e energia de um menino de onze anos não era exercício trivial. Por isso, na primeira manhã de férias, vestia as meias de lã confeccionadas pela minha mãe e corria para a folhinha admirar e convocar o dia 1º de dezembro: férias de verão, de três meses; de rua com hidrante aberto esguichando água na molecada. Não aquela moeda gelada de um mês que o somítico calendário escolar oferecia.
Em julho o dia faz-se claro tarde, escurece muito cedo e a Serra do Mar, principalmente naqueles anos, soprava uma névoa de cegar todos os fins de tarde. E fazia frio; bastante frio. Mesmo que algumas festas juninas que não cabiam em seu mês invadissem o mês seguinte, geralmente, elas vinham acompanhadas das recuperações que eu e meus amigos trazíamos do semestre letivo. No entanto, mesmo com a resistência gelada, nunca faltou quórum para as brincadeiras de rua que terminavam com a fumaça, do cigarro imaginário, que nossos pulmões quentes ofegavam através de nossas bocas.
Do frio e do sereno, o que falava a nós era um não-sei-quê de Sherlock Holmes ou Scotland Yard no encalço de Jack, o Estripador. E, inconscientemente, nossas brincadeiras eram pautadas e se adaptavam a este cenário de romance policial.
A regra, ao contrário daqueles dias, sempre foi muito clara e não variava entre nenhuma mãe: escureceu tem que estar dentro de casa. O que variava era o castigo por seu descumprimento. Em geral, aos delinqüentes, sobravam umas palmadas e uma bela fração das férias trancado dentro de casa. Embora deva cometer justiça aqui: nunca levei as tais palmadas, tão pouco fiquei de castigo, mesmo desafiando a ordem regularmente. Mas sofria por tabela às punições aplicadas sobre meus amigos. Incontáveis foram as longas e cinzas tardes que passei conversando com eles pelo vão da porta ou da janela; eles presos dentro de casa e eu à necessidade de suas companhias.
E geralmente eram nesses dias que combinávamos o que faríamos durante o intervalo entre o castigo vigente e o próximo. Mulheres ainda não eram alvos de nossa atenção – eufemismo à parte. Nossas referências de pessoas respeitadas naquele tempo eram os garotos mais velhos que aterrorizam o bairro: ladrõezinhos de padaria com alvará do ensino formal. Juntando isso àquele cenário londrino, ou de Gothan City de Batman ausente, não era de se surpreender que nessas reuniões surgissem idéias de contravenções estapafúrdias.
Com os dias anoitecendo por volta das cinco da tarde e os pais, em sua maioria, dependendo do transporte público para voltarem do trabalho, tínhamos pelo menos duas horas para aproveitar a anárquica escuridão e o anonimato que ela oferecia. Então, assim que a névoa da tarde encerrava a guerra de pipas no céu, nossa diversão era invadir escolas, construções, bibliotecas e todo e qualquer lugar onde houvesse pelo menos um vigia.
Nosso lugar de incursão predileto era o Elis Regina. Um espaço grande, sem grades nos jardins que o cercavam e estacionamento, com biblioteca, teatro, e pelo menos três vigias por turno. Antes de invadir, identificávamos onde cada guarda fazia o seu turno, traçávamos metas e a rota de nossa fuga. Não havia plano de vandalismo ou qualquer apropriação indébita. O objetivo era sempre o mesmo: invadir, ser descoberto e fugir sob o sons dos apitos dos guardas. Completamente alienados às emoções que os livros da biblioteca poderiam oferecer, ou as apresentações de teatro, íamos para o espaço cultural em busca da adrenalina primitiva das perseguições.
Se os anos trouxeram algum bom senso que me afastou da delinqüência, sigo retratado naquele menino dos primeiros dias de aula. Anelando o alívio e a satisfação mais próxima, porém míope para o seu contexto amplo, acabo por ter que fantasiar sobre as imperfeições do objetivo alcançado e traço planos e projetos onde possa encontrar graça e me divertir sob a névoa onde existo.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Mentiras de julho

Silêncio interrompido constantemente por conversas e risadinhas fora de hora, lápis rabiscando uma ou outra anotação no caderno e todos os olhos voltados, apreensivos, ao relógio quando, finalmente:

"Pééééééééééééééééééééé! " - o sinal da última aula instaura a anarquia na sala!

Enquanto uns gritam comemorando a chegada das férias, outros atiram bolinhas de papel nos colegas. Num canto, Juliana escreve recadinhos no caderno de Sofia, no corredor, entre as carteiras, alguns meninos simulam golpes de luta que, provavelmente, são reproduzidos muito melhor em suas imaginações, e aos poucos, o silêncio vai se restabelecendo com o último anúncio oficial do semestre: a entrega das lições.

"- Lições de Férias?" - é a reação de cada aluno ao receber a triste notícia.

E esta é a primeira das muitas mentiras que o mês de julho nos conta.

Como podem chamar de férias um período com obrigações diárias?

"- Uma de português e outra de matemática - totalizando 60! Façam uma de cada matéria diariamente e não pesará tanto." instruía o professor.

Em situações como esta, em que a possibilidade "não fazer" inexiste - quer fosse pela vigilância dos meus pais ou pelo meu senso de responsabilidade e amor à vida, só restavam 3 alternativas:

1) Fazer tudo nos primeiros dias e livrar-se dos compromissos para depois relaxar por completo, retornando quase enjoado de descansar;
2) fazer uma tarefa por dia conforme o proposto, inclusive para não esquecer dos conteúdos, balanceando o dia em lazer e compromisso;
3) esquecer que existem tarefas até o penúltimo dia de férias e passar os últimos dois dias quase sem dormir pra terminar tudo, voltando às aulas ainda mais cansado.

Acho que não preciso dizer o que eu, e acredito que 99% dos meus colegas fazíamos, né?

Imagina só você com suas férias marcadas, depois de um ano de dedicação diária e chega seu chefe:

" Sr Carlos, o senhor fez um excelente trabalho em nossa empresa neste último ano, merece agora descansar um pouco, né?
Quando é mesmo que vai tirar os 30 dias? Julho? Ótimo, ótimo...
Mas olha só, um mês longe das atividades pode fazê-lo esquecer de como trabalhamos então, ao invés de 8h, o senhor deverá vir todos os dias por 2h e trabalhar nos nossos relatórios."

"..."
  
Mais interessante ainda eram as capas destes calhamaços. Geralmente, ilustrados por flocos ou bonecos de neve, patins de gelo, esqui...segunda mentira de julho!
Porque eu não sei você, mas eu nunca passei estas férias na neve. Em São Paulo faz frio, é verdade. Mas nunca pra tanto!
E mesmo que fosse para o exterior - o que nunca foi o caso - julho não é o mês de verão?

O mais próximo de inverno com gelo que cheguei foi em Campos do Jordão, quando nem era um destino tão badalado e, portanto, ninguém achava normal pagar R$50 pra ver ensaio do Festival de Inverno. Ao contrário, íamos de graça ao evento principal (tudo bem que muitas vezes para ouvir música experimental, que aos nossos ouvidos leigos mais parecia efeito sonoro).

O fato é que nesta cidade, em um julho qualquer, descobri um rinque de patinação no gelo (mantido artificialmente, claro). E como qualquer criança curiosa quis "patinar" em todos os invernos que este "brinquedo" aparecia. Deixemos os detalhes desta experiência pra lá. O importante aqui é ficar claro que com isto, os patins de gelo, mas somente eles, ficaram justificados na capa das minhas lições.

Mas naquele ano, meu pai não tinha tirado férias e estava no Rio de Janeiro a trabalho. E assim fomos todos nós: minha mãe, meu irmão e eu, encontrá-lo e nos amontoar em um apart hotel no Rio, que em julho, não tem nada de 40º.

Ganhamos muito com isto já que, com a temperatura mais amena, conseguimos fazer todos os passeios de turista sem sofrimento. De taxi, de ônibus...foi uma delícia. Corcovado, Pão de Açúcar, Arcos da Lapa, as praias, os cariocas...foi a primeira vez na vida que pensei em morar na praia.

Nesta fase eu já não tinha 60 tarefas pra fazer, era uma praticamente adolescente. Tinha somente uma redação de tema livre. E não sei bem se foi a viagem pra um destino novo, as praias e as belezas naturais do Rio, que sempre foi e será lindo, ou o apart-hotel que, apesar de apertado para os 4, era perfeitamente possível e aconchegante para uma pessoa e me fez pular anos à frente imaginando que na vida adulta moraria lá facilmente, que me inspirou.

Mas aconteceu que os meus costumazes temas "minhas férias", "minha viagem", "minha família", "meu cachorro" deram lugar para outro tipo de texto. Um descritivo, que acompanhava o crescimento de uma flor. Um hibisco pra ser mais precisa. Usei parágrafos intermináveis com todos os vocábulos que conhecia para descrever minuciosamente desde a semente na terra até o desabrochar em flor. Por fim, a flor era arrancada e lançada em cima de um caixão. "E assim apodreceria com a pessoa lá enterrada".

Mórbido? Obscuro? De mau gosto? Revelando um momento de transição? Vai saber...

A única coisa que sei é que esta foi a primeira e última redação que me rendeu um 10! E que me levou à maior de todas as mentiras: a de que eu poderia escrever.